…Foi no Dubai.
Naquela manhã, depois de pesadelos constantes, acordei com a sensação de que algo estranho acontecera nas minhas costas.
Levantei-me e dirigi-me para a casa de banho. Em frente ao espelho, procurei encontrar posição para reflectir o meu dorso e, assim que o consegui, qual não foi o meu espanto quando me apercebi que quatro pequenas saliências, muito semelhantes às patas de um co
elho, me despontavam, duas nas omoplatas e duas um pouco acima dos rins. Estupefacto, e sem perceber o que se teria passado, continuei durante alguns minutos a olhar para o espelho, enquanto as minhas mãos agarravam tais intrusos, tentando despegá-los do corpo, mas sem contudo o conseguirem. Estavam presos e bem presos e a cada esticão a dor que sentia era tanta que desisti.
Voltei para o quarto, tentando pôr alguma ordem nas ideias mais mirabolantes que em catadupa me afluíam. Comecei por maldizer a minha sorte e as quatro patas que me estragavam umas férias para as quais lutara durante dois anos sem descanso, sem horário de trabalho, sem feriados nem fins-de-semana, só com o objectivo de ganhar o prémio que o laboratório farmacêutico oferecia ao seu melhor prospector.
Um pouco mais calmo, delineei algumas estratégias e a primeira foi telefonar para a minha seguradora, ramo saúde. A voz simpática que me atendeu do outro lado lamentou informar mas nada podia
fazer pois a companhia não tinha protocolos com nenhuma entidade prestadora de cuidados de saúde no Dubai.
Depois de alguns impropérios menos dignos, decidi sair do quarto e, sem tomar o pequeno-almoço, não fosse alguém reparar nas minhas costas, dirigi-me para uma esplanada na praia. Sentei-me na cadeira que estava mais junto à parede do bar de apoio, tendo o cuidado de proteger as costas de qualquer olhar indiscreto, e pedi um pequeno-almoço à inglesa.
Sentia-me com um apetite devorador, talvez por ter mais quatro patas para alimentar, e estava já no terceiro ovo estrelado com bacon quando, ao levantar os olhos do prato, vi diante de mim um homem, moreno, aparentando não ter mais de 40 anos, fisionomia com ascendência judaica, orelhas talvez um pouco grandes demais, olhar penetrante e uma tosse quase constante. Parecia já estar a olhar para mim há uns minutos e então, com um ligeiro gesto de ombros, indiquei-lhe uma cadeira para se sentar à minha mesa.
Agradeceu, sentou-se e pediu uma água com gás. Depois começou a falar, a princípio com alguma timidez mas, à medida que a conversa foi avançando, as palavras saíam-lhe quase em catadupa. Começou por me dizer que conhecera um amigo que também tivera um problema parecido com o meu, embora com outra amplitude, pois nem sequer do quarto saiu, a não ser por breves momentos e num dia de infeliz memória, quarto onde acabou por morrer, fechado no seu limitado mundo. Perguntei-lhe se também tinha quatro patas de coelho nas costas, mas não me conseguiu definir muito bem o que acontecera. Parecia-se com uma barata ou um escaravelho, melhor, com um gigantesco insecto.
Apesar da tosse constante, lá me foi desfiando mais um pouco da sua vida, dos seus problemas com o pai, a quem acabava de escrever uma carta, que não sabia se ele alguma vez iria ler, mas na qual lhe tentava explicar os motivos pelos quais a sua presença constante sempre o atemorizara.
Falou-me também doutros amigos que tinham passado por alguns problemas na vida. Um deles fora alvo dum processo judicial, em que tinha sido preso, acusado, julgado, condenado e executado, por um crime de que não teve qualquer conhecimento. Sentia-se tão revoltado com a situação que estava seriamente a pensar escrever um artigo ou uma crónica para o jornal, se tivesse tempo para isso. Só que a companhia de seguros onde trabalhava era tão exigente e ocupava-lhe tanto tempo que, para escrever tal crónica, quase não poderia dormir. E aquela tosse também não o ajudava nada.
Falou-me ainda de um amigo que visitara numa colónia penal mas que mal tivera tempo para ver porque estava completamente embrenhado na construção duma nova e revolucionária máquina de tortura e execução.
Também me contou a história dum outro amigo que emigrara para a América e que no barco onde viajava só não foi linchado e atirado aos tubarões porque, no mesmo barco, seguia também um tio de que mal ouvira falar, mas que o reconheceu e conseguiu interceder junto do comandante, salvando o sobrinho dum destino cruel.
A manhã já ia longa, aproximava-se a hora do almoço e o desconhecido continuava a falar, a contar histórias da sua vida, embora a tosse, por vezes demasiado insistente, lhe causasse alguns problemas e o obrigasse a grandes pausas durante a conversa que ia mantendo comigo.
Perguntei-lhe então se era casado e falou-me de três ou quatro amores com quem se correspondera. Desses, estivera seriamente comprometido com um e quase casara, mas, praticamente em cima da hora do enlace matrimonial, fugira porque, e aí parafraseou um poeta português, “queriam-no casado, fútil…” e ele não estava muito entusiasmado com a ideia.
Há tanto tempo que conversamos e ainda nem sei o seu nome, nem de onde é, nem o que faz.
Não vale a pena, retorquiu, um dia há-de ouvir falar de mim. Como já deve ter percebido, trabalho para uma companhia de seguros, em Praga, estou aqui para ver se melhoro da tuberculose e de vez em quando escrevo umas coisitas sem importância.
Eu, leitor compulsivo, pedi-lhe logo que me mostrasse algo do que escrevera, mas respondeu que não tinha nada consigo; no entanto, havia dois ou três livritos que já tinham sido publicados. O resto que havia lá por casa tinha tão pouco valor que até já pedira ao seu mais íntimo amigo que, quando morresse, queimasse tudo.
Mas o senhor ainda vai viver muitos anos.
Que não, respondeu. A tuberculose já estava em fase terminal e dali só para o cemitério judaico de Praga.
Emocionei-me com o desprendimento e com as histórias daquele homem e estava para convidá-lo para almoçar quando um japonês, aspecto cuidado, cinquentão, sorridente e bastante falador, se aproximou da mesa. Trazia uma mochila às costas repleta de discos de jazz que transportava para todo o lado desde que fechara o seu bar em Tóquio e uns blocos A4 quadriculados, onde ia vertendo as ideias que lhe surgiam enquanto viajava para, um dia, as transformar em livros. Encarou-nos demoradamente e pediu autorização para tirar uma foto. A máquina era uma polaroid já velhinha, quase uma relíquia de museu, das de fotos instantâneas, que o japonês se gabava de ter recuperado e que era o seu orgulho. Tirou a foto. Estava excelente. Pedi que a autografasse e, se assim o entendesse, escrevesse uma dedicatória.
Sim senhor, é para já!
Quando me devolveu a fotografia, já o desconhecido se tinha retirado, sem que me tivesse dado conta, e li “Com Kafka à beira-mar”, ass. Haruki Murakami.
Ia agradecer-lhe quando, ao olhar à sua procura, não vi ninguém. A esplanada estava vazia. Chamei a empregada que me servira o pequeno-almoço e perguntei-lhe por eles mas ela garantiu-me e jurou pela saúde dos seus entes mais queridos que ninguém, a não ser eu, tinha estado naquela esplanada durante toda a manhã.
Impossível, retorqui. Então e a água que veio para a mesa?
Qual água? Já disse ao senhor que não esteve mais ninguém na esplanada.
Teria sonhado? Estaria acordado? Belisquei-me, esfreguei os olhos. Sim, estava acordado. De repente lembrei-me das patas de coelho. Passei as mãos e não senti nada. Chamei novamente a empregada.
Desculpe, pode ver se tenho quatro patas de coelho nas costas? A rapariga olhou para mim, levou uma mão à testa e desapareceu no interior do bar.
Ainda incrédulo, levantei-me e regressava ao hotel quando ouvi chamar. Voltei-me e vi a empregada a gesticular. Regressei à esplanada e procurei a mesa onde tinha estado sentado. Esquecera-me da fotografia.
Livre contra a barreira:
Quem dentes tenha quer trincar! [1](Aí, Março de 2009)
[1] Adaptação livre da sabedoria popular (“quem desdenha quer comprar”).